quarta-feira, abril 23, 2014

Ficção Científica I: Origens

Edmundo Cordeiro (2007. Pág. 120) sobre as origens da ficção científica concorda com Javier Memba e afirma que apesar de alguns autores sugerirem que a FC tem a sua génese na Odisseia de Homero é “mais aceitável fazê-la começar na obra de Mary Shelley, Frankenstein”, sem esquecer obras como “a Utopia de Thomas Moore (1516) e A Nova Altlântida, de Francis Bacon (1627) ou as Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1726)”.
O artista plástico Ward Shelley criou uma infografia muito interessante com a evolução da Ficção Científica e dos seus subgéneros intitulada History of Science Fiction (outras denominações em inglês para FC são “Sci fi” ou “SF”). Nesta infografia/ilustração aparece de forma tímida a referência a um conto de Voltaire intitulado Micromégas, Histoire Philosophic. Depois de uma leitura atenta parece-me que o pequeno conto tem todos os ingredientes para ser considerado uma obra de Ficção Científica.
Thomas Disch (2000. Pág. 34) afirma que “[Edgar Allan] Poe is the source, because people read his stories.” Relutante (devido à questão de Shelley não ter um tão grande número de leitores e não ser tão influente), Disch (2000. Pág.33),  confirma a maternidade de Mary Shelley: “(...) there remains one significant rival to Edgar Allan Poe as the genre’s founding genius: Mary Shelley, the author of Frankenstein (1818).”
Mas voltemos a Voltaire. Thomas Disch (2000. Pág. 32) infelizmente não o inclui na sua lista de “Proto-SF writers” na qual refere nomes como Rabelais, Cyrano de Bergerac e Jonathan Swift. Farei de seguida um pequeno resumo do conto de Voltaire (Micromégas, Histoire Philosophic) que pode ser lido online no sítio do Projeto Gutenberg (www.gutenberg.org).

Micromégas é um jovem habitante de um planeta que orbita Sirius. O jovem cientista e inventor é, quando comparado com a raça humana, um ser de enormes proporções e com um ciclo de vida incomparavelmente maior.
Após dissecar pequenos animais (pulgas) do seu planeta escreveu um livro sobre o assunto, o livro foi considerado herético e Micromégas foi banido por 800 anos. Viajou pelo universo: Our voyager was very familiar with the laws of gravity and with all the other attractive and repulsive forces. He utilized them so well that, whether with the help of a ray of sunlight or some comet, he jumped from globe to globe like a bird vaulting itself from branch to branch.”
Após conhecer vários planetas e vários seres Micromégas chegou a Saturno e espantou-se com o reduzido tamanho dos seus habitantes, o número reduzido dos seus sentidos e o curto ciclo de vida (apenas 15.000 anos).
Micromégas e um saturniano filósofo (secretário da academia) com quem fez amizade decidiram viajar juntos e, depois de correrem alguns planetas do sistema solar, aterraram no planeta Terra na sua nave espacial. Ao princípio o saturniano julgou ser um planeta desabitado, depois encontraram uma baleia com o auxíio de um microscópio numa pequena poça (Mar Báltico) e por fim um barco com vários humanos a bordo.
Micromégas apercebeu-se de que os pequenos seres (“átomos”) falavam entre si, como não os conseguia ouvir cortou um pequeno pedaço da sua unha e usou-a como amplificador para escutar o que os seres diziam. Usou depois um palito para poder falar com eles reduzindo a intensidade da sua voz.
Micromégas, o saturniano e os filósofos e cientistas a bordo da nave trocaram ideias e conhecimentos científicos. Falaram de guerras e da alma. Micromégas apercebeu-se que, apesar de minúsculos, o seu ego e orgulho era gigante pois no fim da conversa um deles afirmou: (...) everything would be found in the Summa of Saint Thomas. He looked the two celestial inhabitants up and down. He argued that their people, their worlds, their suns, their stars, had all been made uniquely for mankind. At this speech, our two voyagers nearly fell over with that inextinguishable laughter (…)”.
Micromégas com grande gentileza promete-lhes um livro com o “sentido de tudo”. Mais tarde, na academia das ciências em Paris, um velho secretário abre e percebe que as folhas do livro estão em branco.

Jasmina Milos (2011. Pág. 8), na sua tese Micromégas: Traduction d’un conte de Voltaire informa-nos que “Micromégas a été rédigé en 1739 et publié en 1752, pendant que Voltaire était en Prusse”. José Barros, no seu artigo Voltaire: Considerações sobre sua Historiografia e Filosofia da História (Revista da Teoria da História Ano 3, Número 7, Jun/ 2012. Universidade Federal de Goiás) diz-nos que: “Com Micromégas (1752), Voltaire chega a prenunciar o género da ficção científica (…)”. Parece-me que o conto é evidentemente uma obra de FC...
Na Biblioteca do sítio da The European Graduate School: Graduate & PostGraduate Studies (www.egs.edu) temos acesso a uma sucinta biografia de Voltaire onde podemos ler uma clara referência ao texto sobre Micromégas e seu companheiro saturniano: “In Potsdam Voltaire wrote perhaps one of the first science-fiction novels involving representatives from other planets looking at humans on earth.”
Ainda no assunto dos “Proto-SF Writers” Robert Grant (2013. Pág. 208) antes de nos mostrar a sua lista selecionada de literatura de FC (que começa com a obra de Mary Shelley) diz-nos que apesar de podermos traçar a origem do género até ao Épico de Gilgamesh (parece-me exagero!) é mais provável que tenha surgido no séc. XVII com as obras Somnium de Kepler e The other world de Bergerac, continuando a desenvolver-se no séc. XVIII com trabalhos de Swift, Defoe entre outros. Carl Sagan na sua famosa série televisiva Cosmos, no episódio Harmony of the Worlds indica a obra de Johannes Kepler – Somnium – como uma das primeiras obra de Ficção Científica. Uma fantástica viagem à Lua publicada postumamente pelo seu filho em 1634. No sítio www.johanneskepler.info o conto é anunciado como a primeira obra do género.

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